Tuesday, September 24, 2024

A FESTA DO PARAZINHO

Crônica

A FESTA DO PARAZINHO       

Por: Raimundo Pompe 

               Há quem considere o passado um elástico temporal, na medida em que está sempre a se repetir na memória das pessoas, sobretudo daqueles que viveram na intensidade da sua plenitude. E para fazermos uma viagem no tempo, escolhemos um dos nossos acontecimentos mais marcante: “A Festa de Nossa Senhora do Livramento do Parazinho”.

              Vejo pelos olhos da memória e recordações sentidas o tempo onde todos ansiosamente aguardavam o início dos festejos. A felicidade se manifestava na alma e no coração do povo, onde todo ele palpitava numa sugestão de alegria. A festa era de todos. Desde a criança que sonhava em aproveitar os dez dias de intensa animação, aos mais velhos, alguns já curvados pelos anos, com os olhos marejados de saudade ao recordar seu tempo de mocidade.

                 A cada ano a Festa ostentava mais fulgor. Entre os dias 22 de junho a 2 de julho o tristonho e sonolento Parazinho transformava-se num lugar vibrátil e trepidante. Uma massa incomputável enchia o lugarejo. Vinha invariavelmente gente dos mais diferentes lugares. Até de outros Estados. Os que vinham de longe chegavam em lotações do tipo “Jardinheiras”, meio de transporte bastante comum naquela época, e ficavam alojados em redes, nas próprias carroçarias dos caminhões.

              A viagem não era muito prazerosa. Não havia  terraplenagem, e portanto, sobravam buracos na antiga estrada. Os únicos meio de transporte eram jipes e caminhões paus-de-arara, que apinhados de gente, atravessavam o nosso rio Coreaú,  invadindo aquela carroçável estreita e sinuosa, deixando para trás o rastro fulgaz de poeira naquela paisagem buliçosa.

                Meu pai era “chauffeur” de praça, diariamente ia e vinha em seu velho jipe, ano 54, de fabricação americana, levando e trazendo famílias inteiras que iam participar das solenidades religiosas. Eu adorava acompanhá-lo nas suas viagens. Para mim era uma aventura "Off-Road". 

             Lembro-me que durante as quatro léguas de percurso, era comum se encontrar várias pessoas a cavalo e outras a pé, com direito a descanso naquela antiga casa alpendrada dos Gracianos, no “Mato Grosso”. Não era para menos. O imenso areal da estrada exauria as canelas dos devotos, que só sentiam alivio quando avistava as “cruzinhas”, sinal que a caminhada estava quase no seu fim. 

               Mesmo assim, nem a exaustiva caminhada, nem os sacolejos e balanços das carroçarias dos caminhões eram suficiente para roubar o ânimo dos fiéis que com suas roupas e os cabelos embatumados de poeira, invadiam as ruas da antiga povoação, alegres e trêfegos, como um “pierrot” em baile carnavalesco.

              A entrada era pelo mesmo lugar. De longe dava para se ouvir os foguetes pipocando no ar e o timbre sonoro e forte do sino da igreja chamando os fiéis para a oração. Em pouco tempo a igreja estava “tinindo” de gente para participar das missas e novenas, soleníssimas. A todos instantes ouvia-se os vivas exaltados num atestado eloquente da mais acentuada fé a Nossa Senhora do Livramento. 

        Relembro com saudade aquela magnífica banda de música executando lindos dobrados nas alvoradas nas manhãs frias do mês de  junho, numa harmonia inebriante na sua riqueza de ritmos e de sons, cujas músicas ainda me soam os ouvidos. Quanta coisa bonita pontilhada de ternura!

              Como eu era criança, dada a minha pouca idade na época, pouco me lembro do tempo em que o vigário era monsenhor Vitorino de Oliveira, no entanto ainda lembro-me da sua figura no patamar da igreja recebendo seu rebanho de fiéis com satisfação e jeito. Consoantes os que me afirma, ele era um homem respeitado por todos e, portanto, seu nome sempre será lembrado. Deixou este mundo, faz anos.

                  Após as solenidades religiosas, rapazes e moças rodeavam a igreja maior, enquanto que ao redor da igrejinha antiga, vestuta, outros casais travavam namoro às escondidas. Naquele tempo havia austeridade, respeito. Hoje é que nos namoros acontecem esses agarrados nú, às claras.

                  Enquanto isso, por outro lado, milhares de pessoas subiam e desciam aquelas ruas pedregosas do velho Parazinho. Era gente pra lá e pra cá, de barraca em barraca. Havia de quase tudo para se comprar. Desde coisinhas miúdas, bugigangas, quinquilharias, às luxuosas barracas dos joalheiros, onde sob  a luz dos “Petromax” brilhavam as jóias e miçangas caprichosamente expostas em mostruários forrados na mais fina vaqueta vermelha, semelhando-as a um rico tesouro. Ali havia todo tipo de novidades: medalhas, trancelins, correntes, brincos, alianças de noivado e anéis de luxo encimados por enormes pedras coloridas.

          Da Serra Grande vinha os comboieiros, sempre trazendo nos lombo dos jumentos, vários grajais com  muitas frutas e verduras, além de uma ruma de batidas, tijolos, bolos“manuês”, e também alguidar, panelas, potes e jarras de todo tamanho, tudo feito do mais puro barro.

                Não faltava também aqueles fotógrafos ambulantes e suas máquinas lambe-lambe, montadas sobre um tripé de madeira, onde a matutada se comprimia para tirar um foto exibindo seu “pincenês” de lentes escuras, junto aqueles painéis pintados com a imagem do taumaturgo São Francisco do Canindé. Fotos coloridas naquele tempo só aquelas nos pequenos "monóculos', que ficavam expostos  pendurados  num cordão.  Meninos como eu eram doidos para se fotografar montado naqueles cavalinhos de madeira.

               Para os que liam, havia os vendedores dos livretos de literatura de cordel. E para animar os que pouco liam os violeiros fazendo  rimas no mais autêntico improviso desfilando seus repentes ao gosto do freguês. Até os “botadores” d’água paravam seus jumentos com ancoretas e tudo, e ficavam de queixo caído em admiração aos repentistas, e de vez em quando os níqueis iam caindo, uma a um, nas “coités” dos poetas. Mais adiante  ouvia-se vozes diferenciadas. Eram os vendedores de ervas, raízes medicinais e daqueles célebres óleos e pomadas “milagrosas” que acabava de identificar na sua platéia mais um portador de uma  enfermidade capaz de ser curada pelo produto em questão. Tinha remédio para todo tipo de “murrinha”.

               Naquele tempo não havia festinhas, sambas e maxixes. O vigário impedia tudo isso e o povo, passivamente, aceitava, com medo de ser enquadrado na categoria de subversivo. Que eu me lembre, os arrasta-pés só passaram a acontecer já de uns anos para cá, no meu tempo de rapazola,  mais isso só acontecia  do outro lado da parede do açude, no “Rabo da Gata”.

              Certa vez, em uma  das minha noite de vadiagem, eu, em companhia de amigos, resolvi furdunçar naquele palco onde funcionava o bagaço que glorificava a “cana”. Acabei me influindo para aprender a dançar, para depois, entrar nos bailes da chamada sociedade, e aí fui parar no “Salão” do seu Paixão. Não havia energia elétrica. A iluminação do ambiente eram lampeões com querosene, feitos de garrafas de vidro com o pavio de estopa. Foi ali que arrisquei os primeiros passos de dança, mas logo no início desisti dos ensaios. Tudo não passou de um malogro, de um fiasco, para não dizer de um desastre a minha estréia na arte coreográfica, e logo nos começo acabei pisando nos pés do meu primeiro par, uma cabrocha da “Tiáia”, que reclamou aperreada, com os dedos todos pisados, e eu capitulei, abandonando a ideia de ser dançarino. Foi nesta mesma noite assisti, pela primeira vez na vida, um ensaio de briga de faca. Apavorado, dei uma baita carreira, ganhando o bredo, descendo, aperreado, aquelas ruas rampeadas. 

              Mas a diversões preferidas  era mesmo nos “botes”, aquele tipo de barquinho que todo ano ficavam instalados no largo na entrada da rua principal. Gente ali era como confete. Todo ele pronto para se balançar naquelas barquetas de madeira.  

             Mas no velho Parazinho, animação se via na noite de São Pedro. Eram tantas fogueiras que parecia o incêndio que dizimou a Roma de Tigelinus, a mando do imperador Nero. As calçadas ficavam lotadas de gente. Em cada  casa ardia a chama da tradição. Por gosto se via famílias inteiras reunidas, a deleitar-se em animadas rodas de conversa, numa ciranda festiva. Era noite de alegria e fartura, de pedaços de carne assada na brasa. 

             Fartura e comida gostosa, no Parazinho, a gente também encontrava na cozinha cheirosa da Pensão da dona Moça Cafajé, que era um primor de higiene. Sua densa e suculenta culinária seduzia a gente: galinha à cabidela, linguiça caseira, sarapatel, panelada e carne de de criação "muçiça”, cozido de boi e aquele delicioso pirão escaldado, fumaçando como chaminé. Era de encher a boca d’água. Merecia ser saboreada de joelhos.

              Tudo isso ficou pra trás, perdido nas páginas amareladas pelo tempo. São fatos e personagens que marcaram uma geração, e que a geração atual  não terá como conhecer, sem os esforços das recordações  daqueles que presenciaram tudo isso, e hoje, de alguma forma, desejam perpetuá-los  na memória histórica da Festa do Parazinho.

              Porém, esses escritos não se trata de saudosismo, apenas. É uma maneira  de tentar resgatar as coisas boas da Festa do Parazinho, nos tempos de outrora, pois é como diz uma canção de sucesso: “nada do que foi será do jeito que já foi uma dia...”


 Raimundo Pompe

No comments:

Post a Comment

JORNAL N.S. DO LIVRAMENTO

Apresentação do Jornal "N.S. DO LIVRAMENTO"      É com profundo respeito à memória histórica e com sincera devoção que temos a hon...