Tuesday, September 24, 2024

A Festa de Parazinho em 1909

 Publicado no Jornal "Nossa Senhora do Livramento" de 1909.

Xilogravura publicada na capa do jornal em 1909.


EM PARAZINHO

Ao P.e V. Martins

Naquela manhã, clara e risonha manhã de julho, sob os quentes raios dum sol, gloriosamente de estio, chegara eu ao Parazinho, onde, ao convite dum velho amigo, o Luiz, ia assistir os últimos dias da festividade da Virgem do Livramento, gloriosa padroeira da encantadora povoação.

Apeando-me à porta da casa do meu hospedador, fui recebido por uma série intempestiva de “bravos e vivas”, partidos dum punhado de antigos condiscípulos e velhos camaradas meus, em cujo número se destacava a figura simpática e rotunda do Luiz, mais alegre, mais hospitaleiro, e, se me permitem o comparativo, mais amigo ainda.

Eu, a princípio, acanhado, fui procurando tornar-me comunicativo, me acamaradando com os homens, sorrindo-me às senhoras, para contrabalançar-lhes no espírito alguma má impressão, causada pelo meu exterior, um tanto exótico, mas tão sem razão foi minha ideia, que, ao quere-la por em prática, fui logo cumulado de atenções e fidalguias, aliás imerecidas, pelos conterrâneos de Lívio Barreto.

À tarde desse mesmo dia, já me achava eu tão familiarizado com essa sociedade de escol, que dir-se-ia conhecido de muitos anos, em convívio quotidiano, e a tal ponto que tornei-me em breve, tão granjense, como os melhores granjenses; tão parazinhense como os mais ardorosos e genuínos filhos do Parazinho.

* *

*

Uma das notas predominantes dessa festa do Parazinho, foi, sem dúvida, o Arthur, o delicioso e incomparável Arthur, em cujo cérebro armazenava, com pasmosa e invejável fertilidade, um sem número de modinhas, cançonetas e chulas, para todos os assuntos, para todas as reuniões.

Numa das vezes, ouvindo eu dum número de senhoritas, agrupadas em roda, os doces e maviosos acordes duma voz de anjo, que cantava, para lá me encaminhei, e no centro desse círculo adorável, avistei o Arthur, que com uma grossa e tosca bengala, à guisa de batuta, marcava, à gentil cantora, um compasso impossível, ereto e teso como um boneco.

A reunião prometia ir muito além, se não fossemos interrompidos por uma senhora já idosa e de semblante alegre e bondoso, e à porta de cuja casa tinha lugar aquela agradável serata, a qual delicadamente nos pediu, fizéssemos ponto final, uma vez que já era tarde, e tinha necessidade de repousar.

Entre protestos surdos, íamos dissolver tão encantadora reunião, quando vimos o incorrigível Arthur, que entre reverentes e exageradas zumbaias e com palavras alambicadas, conseguia enfim da boa senhora, uma curta prorrogação.

Mais tarde, refestelado numa macia rede bordada, me achava eu a conversar com o Luiz, sobre assuntos comerciais, quando ouvimos, à nossa porta, a voz esganiçada do Arthur, que, num tom dolente, choramingava:

“Aqui estou em vossa porta

Em figura de raposa.”

Tivemos de abri-la, para dar entrada ao Arthur, Horácio e ao Raul que acompanhavam duas mimosas senhoritas.

Num ápice, improvisou-se, ali mesmo, uma sessão litero-cantante, na qual, após alguns recitativos, pelos representantes do sexo forte, uma das senhoritas, depois de recitar, com gracioso desembaraço o

“Vamos lá, toque a Dalila

Que também vou recitar”, de Gregório Júnior, cantou, numa voz, que certamente os anjos invejariam se ouvissem-na, uma saudosa modinha, enquanto o Horácio, todo casquilho e gamenho, com o queixo caído sobre o violão, arrancava desse instrumento sertanejo, notas harmoniosas que perfeitamente se casavam com a voz, argentina e mimosa da exímia cantora.

*

* *

Chegara enfim o dia da festa.

Imponentíssima, a missa solene que decorreu em meio de enorme assistência e ao espocar de foguetes e salvas, enquanto, no alto, o sino entoava gorjeios festivos, como se uma multidão de canários viesse ali pousar.

Durante o dia, o mesmo formigar constante, o mesmo vai e vem continuo, agora mais numeroso e que lhe emprestava também um tom mais de festa, em vista das duas bandas de música que frequentemente transitavam pela praça engalanada.

À tarde desfilou a procissão acompanhada por um número incalculável de devotos.

Pelas janelas, calçadas e até pelo meio da praça viam-se piedosas mulheres, de lençol a cabeça; homens rústicos, com enormes chapéus de couro e de palha grosseira debaixo do braço, ajoelhados, contritos, à passagem do andor da Virgem do Livramento, que, com aquele doce e maternal sorriso que tão bem (mutilado), abençoava aqueles romeiros súplices, numa explosão de amor e carinho.

Depois, a debandada geral. Vários cavaleiros, envoltos em densa nuvem de pó, passavam céleres, numa vertigem de fuga precipitada, enquanto senhoritas gentis, com a elegância e donaire de consumadas amazonas, montavam fogosos animais, que, orgulhosos de tão linda carga, erguiam altivamente a cabeça, sacudindo as crinas ao vento.

E fugiam sempre, como visões místicas, em meio dum coro de saudosos adeuses e votos de boa viagem, enquanto pelo ar, derramavam-se, em complicado e gracioso labirinto; milhares de lenços brancos como o lírio, e agitados docemente pela mansa brisa que perpassava então, esses interpretes, fiéis e eloquentes, da Despedida, talvez aninhassem furtivamente, alguma lágrima retardada que indolentemente viesse ali boiar.

Camocim, – 6 – 909.

PEDRO MOREL


No comments:

Post a Comment

JORNAL N.S. DO LIVRAMENTO

Apresentação do Jornal "N.S. DO LIVRAMENTO"      É com profundo respeito à memória histórica e com sincera devoção que temos a hon...