Publicado no Jornal "Nossa Senhora do Livramento" de 1909.
EM PARAZINHO
Ao P.e V. Martins
Naquela manhã, clara e risonha manhã de julho, sob os quentes raios dum sol, gloriosamente de estio, chegara eu ao Parazinho, onde, ao convite dum velho amigo, o Luiz, ia assistir os últimos dias da festividade da Virgem do Livramento, gloriosa padroeira da encantadora povoação.
Apeando-me à porta da casa do meu hospedador, fui recebido por uma série intempestiva de “bravos e vivas”, partidos dum punhado de antigos condiscípulos e velhos camaradas meus, em cujo número se destacava a figura simpática e rotunda do Luiz, mais alegre, mais hospitaleiro, e, se me permitem o comparativo, mais amigo ainda.
Eu, a princípio, acanhado, fui procurando tornar-me comunicativo, me acamaradando com os homens, sorrindo-me às senhoras, para contrabalançar-lhes no espírito alguma má impressão, causada pelo meu exterior, um tanto exótico, mas tão sem razão foi minha ideia, que, ao quere-la por em prática, fui logo cumulado de atenções e fidalguias, aliás imerecidas, pelos conterrâneos de Lívio Barreto.
À tarde desse mesmo dia, já me achava eu tão familiarizado com essa sociedade de escol, que dir-se-ia conhecido de muitos anos, em convívio quotidiano, e a tal ponto que tornei-me em breve, tão granjense, como os melhores granjenses; tão parazinhense como os mais ardorosos e genuínos filhos do Parazinho.
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Uma das notas predominantes dessa festa do Parazinho, foi, sem dúvida, o Arthur, o delicioso e incomparável Arthur, em cujo cérebro armazenava, com pasmosa e invejável fertilidade, um sem número de modinhas, cançonetas e chulas, para todos os assuntos, para todas as reuniões.
Numa das vezes, ouvindo eu dum número de senhoritas, agrupadas em roda, os doces e maviosos acordes duma voz de anjo, que cantava, para lá me encaminhei, e no centro desse círculo adorável, avistei o Arthur, que com uma grossa e tosca bengala, à guisa de batuta, marcava, à gentil cantora, um compasso impossível, ereto e teso como um boneco.
A reunião prometia ir muito além, se não fossemos interrompidos por uma senhora já idosa e de semblante alegre e bondoso, e à porta de cuja casa tinha lugar aquela agradável serata, a qual delicadamente nos pediu, fizéssemos ponto final, uma vez que já era tarde, e tinha necessidade de repousar.
Entre protestos surdos, íamos dissolver tão encantadora reunião, quando vimos o incorrigível Arthur, que entre reverentes e exageradas zumbaias e com palavras alambicadas, conseguia enfim da boa senhora, uma curta prorrogação.
Mais tarde, refestelado numa macia rede bordada, me achava eu a conversar com o Luiz, sobre assuntos comerciais, quando ouvimos, à nossa porta, a voz esganiçada do Arthur, que, num tom dolente, choramingava:
“Aqui estou em vossa porta
Em figura de raposa.”
Tivemos de abri-la, para dar entrada ao Arthur, Horácio e ao Raul que acompanhavam duas mimosas senhoritas.
Num ápice, improvisou-se, ali mesmo, uma sessão litero-cantante, na qual, após alguns recitativos, pelos representantes do sexo forte, uma das senhoritas, depois de recitar, com gracioso desembaraço o
“Vamos lá, toque a Dalila
Que também vou recitar”, de Gregório Júnior, cantou, numa voz, que certamente os anjos invejariam se ouvissem-na, uma saudosa modinha, enquanto o Horácio, todo casquilho e gamenho, com o queixo caído sobre o violão, arrancava desse instrumento sertanejo, notas harmoniosas que perfeitamente se casavam com a voz, argentina e mimosa da exímia cantora.
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Chegara enfim o dia da festa.
Imponentíssima, a missa solene que decorreu em meio de enorme assistência e ao espocar de foguetes e salvas, enquanto, no alto, o sino entoava gorjeios festivos, como se uma multidão de canários viesse ali pousar.
Durante o dia, o mesmo formigar constante, o mesmo vai e vem continuo, agora mais numeroso e que lhe emprestava também um tom mais de festa, em vista das duas bandas de música que frequentemente transitavam pela praça engalanada.
À tarde desfilou a procissão acompanhada por um número incalculável de devotos.
Pelas janelas, calçadas e até pelo meio da praça viam-se piedosas mulheres, de lençol a cabeça; homens rústicos, com enormes chapéus de couro e de palha grosseira debaixo do braço, ajoelhados, contritos, à passagem do andor da Virgem do Livramento, que, com aquele doce e maternal sorriso que tão bem (mutilado), abençoava aqueles romeiros súplices, numa explosão de amor e carinho.
Depois, a debandada geral. Vários cavaleiros, envoltos em densa nuvem de pó, passavam céleres, numa vertigem de fuga precipitada, enquanto senhoritas gentis, com a elegância e donaire de consumadas amazonas, montavam fogosos animais, que, orgulhosos de tão linda carga, erguiam altivamente a cabeça, sacudindo as crinas ao vento.
E fugiam sempre, como visões místicas, em meio dum coro de saudosos adeuses e votos de boa viagem, enquanto pelo ar, derramavam-se, em complicado e gracioso labirinto; milhares de lenços brancos como o lírio, e agitados docemente pela mansa brisa que perpassava então, esses interpretes, fiéis e eloquentes, da Despedida, talvez aninhassem furtivamente, alguma lágrima retardada que indolentemente viesse ali boiar.
Camocim, – 6 – 909.
PEDRO MOREL
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